Mostrando postagens com marcador Problemas ambientais. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Problemas ambientais. Mostrar todas as postagens

Audiência pública sobre prédios ao lado do Parque São Francisco demonstra revolta da população

Por Letícia Maria Klein •
01 novembro 2024
"A impressão que tive é de que a audiência pública ocorreu apenas para cumprir mera formalidade, mas se a decisão sobre a aprovação do estudo de impacto ambiental e a emissão da licença ambiental prévia já está tomada, tanto a audiência, quanto o estudo, perdem o seu valor", concluiu Pamela Eduarda Maass, bióloga e uma das principais articuladoras da comunidade envolvida com o caso do projeto de construção de prédios ao lado do Parque São Francisco, após a segunda audiência pública sobre o tema, realizada nesta semana - a primeira foi no ano passado para apresentação do Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV).

A audiência pública para apresentação do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) do projeto ocorreu na segunda-feira, dia 28 de outubro, no Centro Cultural 25 de Julho, em Blumenau. Havia entre 70 e 80 pessoas presentes, com a maioria manifestando abertamente sua oposição à construção. A gravação da audiência, que foi transmitida online, está disponível neste link

Público no início da audiência pública para apresentação do RIMA do empreendimento da Província Franciscana

Neste post vou recapitular o caso (fiz este post anteriormente explicando a situação e alguns impactos ambientais), detalhar o ponto polêmico, relatar como foi a audiência e quais são os próximos passos. 

Recapitulação do caso

O Parque Natural Municipal São Francisco de Assis, localizado em um morro no centro de Blumenau, é uma Unidade de Conservação que surgiu a partir de um acordo feito em 1995 entre a Prefeitura da cidade e a Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil (proprietária do Colégio Bom Jesus, localizado na rua em frente ao morro do parque). 

Em troca da doação de 222 mil m² de vegetação nativa de Mata Atlântica para o município, a Província teria o direito de construir até quatro prédios residenciais em um conjunto de terras limítrofe ao parque, sendo três com sete pavimentos e um com oito, e até dois prédios em outra gleba próxima, sendo um residencial com sete pavimentos e um comercial com 1.000 m², somando 37 mil m² de área construída total nessas seis possíveis edificações. É exatamente essa questão do projeto previsto em lei que tem sido o foco da polêmica. 

O acordo foi ratificado e oficializado na Lei Complementar 99/95, que também formalizou a criação do Parque Natural Municipal São Francisco de Assis. A lei anterior, LC 98/95, estabeleceu a Área de Proteção Ambiental São Francisco de Assis (APA, outra Unidade de Conservação) no entorno do Parque, com o objetivo de restringir os usos ocupacionais e reduzir os impactos à biodiversidade. Na última década, foram identificados um olho d’água e uma nascente nas terras que seriam destinadas à implementação de até quatro residenciais previstos no acordo, além de uma outra nascente já dentro da área do Parque, cuja restrição também incidiria sobre as terras da Província. Tanto o olho d’água quanto as nascentes geram um raio de 50 metros de Área de Preservação Permanente (APP), que são áreas não passíveis de ocupação, segundo a Lei Federal 12.651/12. A identificação dessas APPs levou à doação, da Província para a Prefeitura, de mais 7,7 mil m², correspondentes às áreas com restrição de ocupação, aumentando a área do Parque para os atuais 230 mil m² (23 hectares), ratificada na LC 1.554/24

Na proposta do acordo original e ainda vigente, um dos possíveis prédios estaria totalmente inserido em região de APP, o que inviabilizaria a construção. As restrições geradas pelas APPs possivelmente também atingiriam parte de outros dois prédios, como se vê nas imagens abaixo, editadas para facilitar o entendimento:

Os três retângulos marcados com um X vermelho indicam as construções que não poderiam ser feitas devido à sobreposição com APP, registrada nas fotos abaixo. Na audiência, não foi apresentada uma representação das APPs existentes atualmente e suas restrições sobre o projeto previsto no acordo. 

Representação da situação atual da área, após o desmembramento que culminou na doação de mais 7,7 mil m² para o Parque. Os pontos azuis são as nascentes (os dois de cima) e um olho d'água (abaixo). Os círculos em vermelho são as APPs geradas a partir das nascentes e do olho d'água (raio de 50 metros). Uma parte dessas APPs atinge o terreno onde está previsto o projeto atual das duas torres residenciais (linha contínua amarela).


O que diz a lei é que o Parque passaria a ser de propriedade da Prefeitura mediante a construção dos prédios (depois de liberado o Habite-se). Como os prédios nunca saíram do papel, o acordo nunca foi cumprido na prática. O Parque foi criado, funciona há quase 30 anos, está sob a responsabilidade da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas), mas pertence, no papel, à Província. 

Mudanças na legislação

Para que os prédios fossem construídos, e o acordo fosse cumprido, era preciso que a Prefeitura alterasse o Código de Zoneamento do município, e assim foi feito. O zoneamento da área passou de ZPA (Zona de Proteção Ambiental) para ZLE1 (Zona de Localização Especial, onde é incentivado o uso residencial, a proteção cultural e/ou o desenvolvimento de atrativos turísticos e pontos de referência paisagística relevantes) para que os prédios pudessem ser construídos ao lado de uma UC. 

O que também foi aprovado, desta vez via Resolução 07/19, do Conselho Municipal de Planejamento Urbano (Coplan), foi uma nova proposta de empreendimento, que difere da proposta do acordo que continua vigente na lei (de até 6 unidades), devido à questão da APP. Pela hierarquia da legislação, uma lei está acima de uma resolução, então esse movimento poderia ser questionado. 

Em terceiro, era necessário que a delimitação da APA São Francisco de Assis fosse alterada, para que os novos prédios ficassem do lado de fora, junto com outros imóveis que já tinham projetos aprovados antes da lei 98/99, que criou a APA. A nova delimitação foi aprovada em reunião do Conselho Municipal do Meio Ambiente (CMMA) no dia 19/09/2023, reduzindo a área de 508.745,60 m² para 481.084,13 m². Somando as áreas da LC 1.536/23, que alterou os limites da APA, a área total da UC é de 461.398,37 m², então está faltando terreno. 

Mesmo com essa alteração que permitiria a construção dos prédios fora da APA, continua sendo ignorado o fato de que os empreendimentos estariam dentro do raio de 3 km considerado como zona de amortecimento de unidades de conservação sem plano de manejo, segundo a Resolução Conama 428/10. Nem o Parque São Francisco nem a APA São Francisco tem um plano de manejo que especifique um raio de amortecimento, tendo direito, portanto, a no mínimo 3 km. 

Impactos ambientais, sociais e paisagísticos

São inúmeros os impactos que os dois prédios residenciais de 20 andares e o prédio comercial causariam na região, incluindo impactos ambientais, à mobilidade urbana e ao paisagismo natural da cidade (visto que seriam duas torres de 20 metros no topo de um morro coberto por Mata Atlântica). 

A supressão de vegetação nativa, incluindo espécies ameaçadas, a movimentação de terra, os barulhos das obras, a iluminação e sons dos apartamentos, a grande movimentação de veículos e pessoas, movimentação de caminhão de lixo, a proximidade com animais domésticos, a projeção de sombra onde hoje tem incidência solar contínua e a interferência na dinâmica dos ventos devido à altura das torres afetariam diretamente as populações de fauna, flora e funga protegidas pelo parque, podendo levar à diminuição de espécies, fuga de algumas espécies para o outro lado do morro, gerando vazios na floresta, e também a atração de determinadas espécies (especialmente mamíferos) por comida, aumentando o risco de atropelamento e também da domesticação de animais silvestres. 

A construção dos prédios, em conjunto com outros que estariam previstos para a região central se aprovados, aumentaria o efeito de ilha de calor, devido ao aumento de concreto e à redução de vegetação. Ilha de calor é um fenômeno derivado da acumulação de estruturas como edifícios, calçadas e asfalto, que absorvem mais calor e o liberam de forma lenta, ao contrário de uma floresta e outras paisagens naturais. Cidades costumam ter ilhas de calor na região central, onde existe uma concentração de construções. Essa condição tornaria a região ainda mais quente, aumentando a necessidade de ar-condicionado e elevando a fatura de energia das residências e estabelecimentos comerciais na região. 

Existe também um possível risco geológico. Segundo a base cartográfica do município, de acordo com o Decreto 12.227/2019, a área da região em debate está inserida em três classificações de risco: alto perigo ou risco (em laranja, onde estariam os prédios residenciais), de médio perigo ou risco (em amarelo, onde estaria o prédio comercial) e serras e morros altos de controle especial (em verde, o próprio Parque).


Recorte da base cartográfica do município que mostra o trecho entre as ruas Ingo Hering e Francisco Knoch. Área laranja é alto perigo ou risco; amarela, médio risco; verde, serras e morros altos de controle especial. Fonte: GeoBlumenau.

Recorte da base cartográfica do município com a indicação da localização dos prédios do projeto

Por outro lado, o geólogo contratado pelo empreendedor para realizar a análise do terreno, Gerson Ricardo Muller, classificou as áreas onde estariam o residencial e o comercial, conforme a proposta aprovada pelo Coplan, como de baixo a inexistente perigo ou risco e médio perigo ou risco. Segundo seu laudo técnico, "o imóvel em questão, nas condições topográficas atuais, apresenta condições geológico-geotécnico de estabilidade não havendo alguma restrição a sua ocupação" e a sua ocupação "não gera situações de risco aos vizinhos quando obedecidos os quesitos" detalhados no parecer (as medidas protetivas em relação às áreas edificadas no entorno). O laudo foi analisado pela Diretoria de Geologia, Análise e Riscos Naturais (DGEO), da Prefeitura, que "não se opõe ao uso e ocupação da área", conforme parecer do processo. 


Imagem de parte da planta referente ao estudo geotécnico e geológico realizado pelo geólogo Gerson Muller, apresentado junto ao estudo de impacto ambiental. As áreas das possíveis construções foram classificadas como de baixo a inexistente perigo ou risco, em verde, e médio perigo ou risco, em amarelo.

Com as mudanças climáticas, que estão aumentando a frequência e a intensidade de eventos climáticos extremos, é natural que uma construção de 20 andares no topo de um morro gere preocupações quanto a potenciais deslizamentos, que já ocorreram nessa mesma região durante a tragédia climática de 2008. 

Em relação à mobilidade urbana, em 2017, o Ministério Público não recomendou o prolongamento da rua Ingo Hering, a que dá acesso o Parque. Segundo o Relatório de Impacto Ambiental apresentado na audiência e disponível neste link, o empreendimento não contempla a ligação da rua Ingo Hering com a rua Francisco Knoch, no outro lado do morro, o que significa que a Prefeitura teria que arcar com os custos da obra, caso ela aconteça - e tudo indica que ela teria que acontecer se os prédios forem construídos, porque o prolongamento seria fundamental para viabilizar o fluxo de acesso do público, composto por moradores e frequentadores dos prédios residenciais e comercial e também do parque. A própria população acabaria reivindicando esse acesso, acreditam as pessoas envolvidas no caso, devido ao excesso de tráfego na rua Ingo Hering, que é sem saída, e na rua 7 de Setembro, que já tem tráfego intenso atualmente. 

A via projetada consta na lei do acordo e também aparece no mapeamento de vias projetadas da cidade, conforme anexo II e Mapa do Sistema Viário do Decreto 15.624/24, como vias 24, 24a e 24b. Seria um indício de que a Prefeitura considera o projeto como aprovado e realizado, mesmo com o processo ainda em andamento e passível de recusa por parte da Semmas? 


O tracejado vermelho mostra o prolongamento da rua Ingo Hering. A 24 ligaria a Ingo Hering com a rua Francisco Knoch; 24a, Francisco Knoch com a Richard Holetz; 24b, Richard Holetz com a Cuiabá. Fonte: Mapa do Sistema Viário.

Representação da via projetada na base cartográfica do município

Compensações

Duas importantes compensações que a Província teria que fazer foram dispensadas pela Semmas, em reunião do dia 7/7/2023: os passa-faunas terrestre e aéreo e o Projeto de Recuperação de Área Degradada (PRAD). A dispensa se deu mediante à futura doação de duas áreas extras para o Parque, somando 28 mil m², que "garantiriam o fluxo de fauna mesmo após a construção do empreendimento". As áreas extras estão mostradas na imagem abaixo, em azul:


As novas doações, que dispensaram os passa-faunas e o PRAD, em azul. Os terrenos em vermelho são a primeira doação, e o verde, a segunda (Área de Preservação Permanente).

A Semmas considerou que a doação dessas áreas extras, com grande presença da espécie exótica invasora pinus, compensaria as medidas obrigatórias de passa-fauna e o PRAD. Além de implicar mais gastos para a Prefeitura, com uma possível futura remoção da espécie invasora e reconstituição da área, a doação não deveria dispensar, sobretudo sem estudos comprobatórios, os passa-faunas terrestres e aéreos, porque as espécies não conhecem os riscos que vêm com a ocupação humana e vão continuar atravessando pela rua, como já fazem hoje, afirmam fontes. 


Essa decisão foi tomada em uma reunião na Semmas com a presença do secretário municipal na época, Jefferson E. Voigtlander; o diretor de gestão ambiental, recursos naturais e planejamento ambiental, Felisberto José Luciani; os representante da Província Franciscana Imaculada Conceição do Brasil, Dalírio José Beber e Fabio Dutra de Moraes, com a assessoria técnica do engenheiro florestal Fabrício Wilbert. Nessa reunião também foi decidido que a doação das novas áreas ao Parque São Francisco não resultaria em novas exigências quanto às fachadas das torres em seu lado sul e que seria permitida a substituição da vegetação natural frontal às torres residenciais por vegetação de paisagismo. 


A reunião não teve a presença dos técnicos da Semmas nomeados para analisar o Estudo de Impacto Ambiental, conforme registra a ata, e a decisão foi tomada sem a apresentação de estudos que comprovassem os benefícios e ganhos da troca dos passa-faunas e PRAD pelos terrenos. Será que essa reunião influenciará na tomada de decisão pela comissão, ou os técnicos terão autonomia para solicitar as medidas mitigadoras citadas, se considerarem que são pertinentes?

Audiência pública

Resumo do processo

A audiência começou às 19h. A mesa foi composta por:
- Rosimari Bona, secretária de Meio Ambiente e Sustentabilidade;
- Robson Luiz Polmann, engenheiro agrônomo da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas) e designado como secretário da audiência;
- Fabrício Wilbert, engenheiro florestal representante e assessor técnico da Província;
- Ricardo Murilo da Silva, advogado da Cedro Inteligência Ambiental;
- Regina Gonçalves, bióloga da Cedro Inteligência Ambiental e coordenadora do Estudo de Impacto Ambiental;
- Bianca Wachholz, arquiteta responsável pelos projetos, da construtora Torresani, empresa contratada para o projeto.
O representante oficial da Província, o político Dalírio Beber, também estava presente no local, mas não compôs a mesa nem se manifestou em nenhum momento. 


Durante uma hora, a arquiteta e os dois representantes da Cedro, empresa contratada para fazer o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), apresentaram o histórico do projeto, o acordo original, as alternativas locacionais, as características dos prédios com potencial de minimizar os impactos, um resumo do RIMA e os programas de compensação ambiental. Depois de uma breve pausa, a audiência seguiu com as perguntas do público (escritas e orais) direcionadas à Cedro. Conforme dito no início da audiência, a Semmas não se pronunciaria nessa audiência, ficando com a responsabilidade de somente coletar informações para a continuação da análise do estudo e de receber perguntas pelo e-mail cmma.semmas@blumenau.sc.gov.br no prazo de sete dias a contar da audiência. 


Nem todas as perguntas entregues para a mesa na forma escrita foram lidas e, das que foram, nem todas foram satisfatoriamente respondidas. Dessa apresentação, vale ressaltar alguns pontos de omissão ou inconsistências por parte da Cedro:


- Durante a apresentação sobre o acordo original, não foi falado que a proposta previa a construção de até 6 edifícios, termo que faz diferença, pois a construção de um único prédio em cada conjunto de terras já atenderia o acordo. 


- Não foram mostradas informações quantitativas sobre os efeitos da obra em animais, plantas, fungos e corpos hídricos do Parque. O EIA apresentado, segundo fala da Pamela na audiência, informa que 3 espécies de árvores ameaçadas de extinção, com milhares de indivíduos, seriam suprimidas, e aponta onde elas seriam replantadas - local que, segundo a bióloga, possivelmente não seria o ideal considerando as características das espécies. Na resposta a esta pergunta, a representante da Cedro disse que essa área ainda não tinha sido definida. 


- Ficou evidente, por parte das falas do advogado e do representante da Província, que vale a situação de dois pesos e duas medidas quando se fala de legislação: "não haveria alternativa à construção dos prédios naquela localidade, porque o acordo precisa ser cumprido", conforme ressaltado por eles várias vezes (a lei precisa ser cumprida), mas não houve problema em mudar o Código de Zoneamento do município para fazer valer o acordo (a lei pode ser alterada). 


- Não foram apresentados layout nem detalhes do prédio comercial. 


- No RIMA apresentado, consta que as áreas onde estariam localizados os prédios são de baixo ou médio risco geológico. Essa classificação vem do laudo do geólogo contratado pela empresa, mas eles citam a base cartográfica do município como fonte (GeoBlumenau), que por sua vez classifica a área onde estaria o residencial como de alto risco. Conforme já mencionado, a DGEO aprovou o laudo do geólogo contratado pela Cedro que classifica as áreas visadas como de baixo ou médio risco. 

Alternativas locacionais

Diferente do primeiro RIMA protocolado pela Cedro, que previa duas alternativas diferentes da proposta da lei, o novo RIMA e a apresentação na audiência mostraram o que seria o projeto original, sem fazer menção às APPs e restrições atuais, além dos outros dois. O projeto preferido pelo empreendedor, justificado como melhor em termos ambientais, seria a alternativa locacional 3, porque teria a menor área de intervenção. O EIA apresenta os impactos relativos a esta proposta, que contempla dois prédios residenciais de 20 andares e um comercial de 8. Porém, nunca foram feitos estudos sobre a proposta original.

Alternativa locacional 1, conforme acordo original, sem a projeção das APPs e restrições atuais

Alternativa locacional 2, que teria menos intervenção do que a 1 e mais do que 3

Alternativa locacional 3, a escolhida pela Província

"Apresentaram um projeto totalmente diferente do proposto no acordo vigente e formalizado na lei complementar 99/95. Não existe estudo comprovando que a proposta do acordo vigente seria mais prejudicial do que a nova proposta, como foi abordado pelo advogado que prestou apoio na apresentação do relatório de impacto ambiental", afirmou Pamela. Durante a audiência, ela se manifestou a esse respeito. A arquiteta Bianca respondeu dizendo que inicialmente havia sido entregue ao Coplan um projeto com quatro prédios de 10 andares, também diferente da proposta original, mas somando os mesmos 37 mil m² de área construída previstos na lei. Depois de um ano e meio sob análise, em 2019 o Coplan aprovou o projeto atual composto por 2 torres residenciais com 20 pavimentos cada e um comercial com oito pavimentos, diminuindo a quantidade de edificações, mas aumentado sua altura para manter a mesma quantidade de área construída. 

"Além disso, os impactos ambientais decorrentes da possível implementação do empreendimento não foram mensurados, bem como as medidas mitigadoras não ficaram claras, impossibilitando, na minha opinião, a análise da viabilidade para implantação do projeto no local proposto. Ressalto também que, até hoje, não foi apresentado o layout do projeto em trâmite na prefeitura, que contempla 2 torres residenciais com 20 andares, 1 comercial e 1 estacionamento. Apenas imagens ilustrativas dos residenciais foram apresentadas, não sendo possível visualizar a inserção do projeto todo na paisagem." 

Manifestações do público e respostas da mesa

A maioria dos presentes se mostrou contrária ao projeto, com manifestações verbais e também uso de placas, de forma pacífica, mas calorosa. Houve até uma votação simbólica, solicitada por um dos presentes na plateia, para que todos aqueles que fossem contra levantassem a mão, quando então ficou evidente a preferência da maioria pela não construção do projeto.


"A audiência marcou a participação da comunidade, o braço social e cultural da dimensão da sustentabilidade entrou no debate, que até então estava restrito às reuniões do Coplan, Semmas e acordos internos entre prefeitura e Ordem Franciscana. A audiência não trouxe uma alternativa capaz de convencer para o problema do risco ambiental ecológico e paisagístico, o que ficou claro é que a base de toda defesa da prefeitura foi salvar um acordo econômico, que não está acima dessas garantias de segurança e direito coletivo. A prefeitura precisa encontrar um caminho para determinar a capacidade real de suporte para o local. Os apontamentos realizados pelos especialistas presentes na audiência ontem mostraram várias inconsistências na proposta defendida pela prefeitura por parte do Coplan e Semmas", afirma Daniela Sarmento, arquiteta e urbanista presente na audiência. 


"Temos que encontrar uma saída que aponte o potencial real de suporte daquela área, como é feito em todas as áreas de preservação, e o que não for possível construir nesse local a prefeitura pode doar outros locais ou encontrar outras contrapartidas. O que ficou claro também é que a comunidade entendeu que ali não é local para 2 torres de 20 pavimentos fruto de um acordo econômico feito 30 anos atrás e que fere muitos requisitos ambientais, urbanísticos e de segurança. Outro ponto importante: o debate foi qualificado e apontou a fragilidade daquela área, e isso ilumina os riscos e impactos de outros empreendimentos que foram autorizados pela prefeitura naquela região de área de risco no entorno do shopping. A audiência abriu a caixa de pandora e a necessidade urgente de se detalhar um Plano Municipal de Paisagem para Blumenau."


Foram feitas dezenas de perguntas escritas, além das manifestações orais, e algumas ficaram sem respostas ou tiveram respostas insatisfatórias, como, por exemplo:


  • Como alteraram a delimitação de uma Unidade de Conservação (a APA São Francisco) sem estudos prévios e consulta pública?
  • A supressão de vegetação requerida para a construção dos prédios e do estacionamento causará perda de hábitat e deslocará o efeito de borda para o interior dos fragmentos florestais remanescentes e, sobretudo, para o interior do Parque. A área que precisará ser suprimida hoje se comporta como uma zona de amortecimento para o Parque, então qual será a dimensão do efeitos de borda sobre o ecossistema protegido pelo Parque?
  • Como ficará a visitação ao Parque e as pesquisas científicas durante as obras e a manutenção da sede no mesmo local, visto que há relatos de que ela seria transferida para o outro lado do morro, perto da Cia. Hering? Respondida parcialmente, que a visitação é de responsabilidade do poder público (nessas horas, ironicamente, o parque é de posse da Prefeitura).
  • Quais as alternativas à não construção naquela localidade?
  • Se a área é privada e dizem que o Parque não existe em teoria, como justificar o fato de a Prefeitura ter declarado como de utilidade pública quatro terrenos para fins de desapropriação sob justificativa de ampliação do Parque?
  • Qual o embasamento técnico para dispensa do passa-fauna e do PRAD?
  • Por que a zona de amortecimento de 3 km prevista em legislação nacional não está sendo respeitada?
  • Por que o Conselho não indenizou ou comprou o terreno conforme orientação do Ministério Público, em laudo técnico de 2017, de que "caso não seja identificada alternativa técnica locacional que concilie o respeito às restrições legais e ambientais incidentes sobre a área investigada e os interesses do empreendedor, sugere-se a permuta desta área por outra com aptidão para a ocupação pretendida e a anexação da primeira ao Parque Natural Municipal São Francisco de Assis"?

Houve muitas falas importantes de membros da comunidade preocupados com a construção desse projeto, em destaque a fala da Rejane, uma que engloba vários impactos e pergunta à mesa se haveria alternativas à construção (ao que o advogado novamente respondeu como "legalmente não", voltando à questão de dois pesos e duas medidas).

Soluções

Uma das grandes preocupações é o que pode acontecer com o Parque caso o acordo seja desfeito, e existem soluções que priorizam o Parque nesse sentido.  


Como o próprio advogado da Cedro disse na audiência, se o acordo for desfeito, o parque volta a ser propriedade privada. A partir daí, a Prefeitura poderia comprar o terreno, indenizando a Província mediante a declaração daquela área como de utilidade pública, ou propor a troca daquele terreno por outra área pública para a construção, conforme o Ministério Público já recomendou, onde não houvesse tantos impactos ambientais, sociais e paisagísticos. Segundo Rejane, anos atrás o município ofertou terrenos na parte norte da cidade, no bairro Itoupava Central, em troca, porém a Província não aceitou. O representante da Província presente na audiência, Fabrício Willbert, que está envolvido no caso desde 2017, disse desconhecer essa situação, mas que levaria a questão aos responsáveis (será?). 


Considerando os impactos à biodiversidade do Parque e à mobilidade urbana, o alto risco geológico, a alteração da paisagem, aumento do efeito de ilha de calor, mudanças climáticas e aumento do risco de enchentes e deslizamentos, saneamento básico, o dano ao bem-estar público por causa de todos os impactos e também a manifestação contrária de um grande número de cidadãos, é preciso que a Prefeitura e a Província reavaliem o acordo. Existe também a possibilidade de a construtora Torresani não querer se envolver na obra. Segundo fontes, o proprietário da Torresani está preocupado com a "confusão" que o empreendimento está gerando e não gostaria de ver o nome da construtora envolvido em polêmica, possivelmente perdendo o interesse em prosseguir. Entrei em contato com a empresa para obter esclarecimentos sobre o assunto, mas não tive retorno até a publicação desta matéria. 


A aprovação de um empreendimento de luxo, no topo de um morro, ao lado de uma Unidade de Conservação, abre precedentes perigosos, facilitando a autorização de outros projetos que tem tanto quanto ou até mais pontos negativos do que positivos - como é o caso de um projeto similar de construção sobre a parte de trás do Shopping Neumarkt, também ao lado da APA e do parque São Francisco! O projeto prevê três torres residenciais com 17 pavimentos cada. O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV 012/2022) foi aprovado pelo Coplan na Resolução 06/23, com acréscimo da apresentação de um Estudo Ambiental Simplificado (EAS) devido à proximidade com as UCs. Até a presente data, o EAS está em análise por uma Câmara Técnica nomeada dentro do Conselho Municipal do Meio Ambiente, conforme encaminhamento dado na reunião do dia 24/09/2024. Em seguida, será analisado pela mesma comissão que está avaliando o EIA/RIMA da Província, na Semmas. 


Figura da fachada do prédio, conforme EIV aprovado

Figura da parte posterior do empreendimento, conforme EIV aprovado

A partir dessa audiência, a comissão técnica da Semmas continua a análise do EIA. Em seguida, o estudo segue para análise da Câmara Técnica do Conselho Municipal de Meio Ambiente. Se o estudo for aprovado pela Semmas e pelo Conselho, a licença ambiental prévia será emitida - e se aprovado, a Procuradoria-Geral do Município precisará ser questionada quanto à mudança da lei do acordo para validar a aprovação, visto que o projeto atual difere do que está na lei. Se o projeto for reprovado, não há licença nem empreendimento. Mesmo que a licença ambiental prévia seja emitida, ela não permite o início das obras. Ela aprova a localização e a concepção do empreendimento, além de atestar a viabilidade ambiental. Posteriormente, para início das obras, deve ser requerida a licença ambiental de instalação. Além disso, os projetos devem ser aprovados pela Secretaria de Planejamento Urbano e também deve ser emitida autorização para supressão da vegetação. 

+

Entenda o caso da possível construção de três edifícios ao lado do Parque São Francisco

Por Letícia Maria Klein •
21 agosto 2024

Com 23 hectares, o Parque Natural Municipal São Francisco de Assis está localizado no topo de um morro no centro de Blumenau, perto do primeiro shopping center da cidade. Por ficar no topo de um morro, a mata em volta acabou preservada também, o que segundo a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (9.985/2000) é conhecido como zona de amortecimento: o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade.

Essa situação pode mudar muito em breve, porque existe um projeto de construção de três torres no entorno do parque, sendo duas residenciais e uma comercial. As construções não só estão previstas na lei de criação do parque (nº 99/95) como condicionam a existência dele aos prédios novos que seriam erguidos! 

Desenho das torres residenciais apresentado no Relatório de Impacto Ambiental
Desenho das torres residenciais apresentado no Relatório de Impacto Ambiental

A situação surgiu a partir da doação de uma grande área de terras que a Província Franciscana da Imaculada Conceição (Colégio Bom Jesus) fez ao município em 1995. Como conta Lauro Bacca neste artigo, então presidente da antiga Fundação Municipal do Meio Ambiente (hoje Secretaria), a Província não sabia o que fazer com o terreno, localizado numa Zona de Proteção Ambiental, que apesar do nome permitia a ocupação residencial unifamiliar sob certas restrições. Para evitar isso, a solução foi destinar a área de floresta mais preservada à criação de um parque e as áreas mais degradadas à construção, ficando 223 mil m² para o parque e 70 mil m² disponíveis para ocupação humana.

Paralelamente, a Lei Complementar nº 98/95 criou a Área de Proteção Ambiental São Francisco de Assis, destinada a proteger o entorno do parque, constituída por uma Zona de Transição, "com áreas sob fortes pressões sociais e relativamente comprometidas com a urbanização, devendo harmonizar a integração urbana com o ambiente natural", diz a lei. "Passado esse tempo todo, no meio do qual aconteceu a tragédia de 2008", conta Bacca no artigo, decidiu-se trocar a quantidade de seis prédios com altura menor, conforme a lei, por três prédios com altura maior. Dessa forma, o parque ganhou outros 7 mil m², chegando ao total de 230 mil m² que tem hoje.

Segundo Bacca, o cumprimento do acordo acarretará a escrituração dos 23 hectares em nome do município, significando a posse legal e consequente efetivação do Parque São Francisco. Até hoje, o terreno continua no nome da Província, e como a construção dos prédios é uma condicionante para a doação, somente após a edificação é que a área passaria a ser pública. Essa parte da efetivação legal do parque é boa, mas a construção em si das torres e suas consequências não tem nada de positivo, por causa dos impactos ambientais e também sociais.


O Ministério Público de Santa Catarina se manifestou por meio de um laudo técnico em relação à localização, dizendo que "caso não seja identificada alternativa técnica locacional que concilie o respeito às restrições legais e ambientais incidentes sobre a área investigada e os interesses do empreendedor, sugere-se a permuta desta área por outra com aptidão para a ocupação pretendida e a anexação da primeira ao Parque Natural Municipal São Francisco de Assis". Ou seja, a prefeitura poderia trocar a área por outro terreno público, e seria melhor construir em outro lugar que não tivesse tantos poréns quanto ao impacto sobre um ecossistema preservado e sobre uma região da cidade que já recebe um fluxo alto de veículos, devido à proximidade do shopping e por estar no centro. 

Na última reunião do Conselho Municipal do Meio Ambiente (CMMA), realizada no dia 13 de agosto, foi questionada a necessidade de alteração da lei para inclusão do novo projeto, que prevê três torres ao invés de seis como estava inicialmente previsto. Afinal, como pode estar sendo discutido um projeto diferente do que está previsto na legislação? Outra questão é que o parque existe e funciona há quase 30 anos, mas os prédios nunca foram erguidos, então como fica a legalidade da situação? Se o parque é uma realidade há décadas, ele deveria seguir a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (nº 9.985/2000) quanto ao respeito à zona de amortecimento, que deve ser de no mínimo 3 km pela Resolução Conama 428/2010 para empreendimentos que requerem licenciamento ambiental.

Esse imbróglio jurídico precisa ser resolvido para que a questão possa avançar, tanto para o sim quanto para o não à construção das torres. Quanto à isso, existe a possibilidade de a Procuradoria-Geral do Município ser acionada (e na última reunião do Conselho a maioria dos presentes entendeu pela necessidade de questionamento à PGM, conforme ata), mas há forças contrárias a isso dentro da própria Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas), que buscam a aprovação do projeto sem ainda terem consultado diretamente o departamento jurídico sobre a aplicação das resoluções legais, enquanto há também forças que requerem a solicitação, segundo fontes ligadas ao caso.

A comissão da Semmas designada para o processo, composta por seis membros de diferentes áreas e nomeada pela portaria 29.695/2024, está atualmente avaliando o Estudo de Impacto Ambiental (EIA). O coordenador, que é quem relata o processo na câmara técnica do CMMA constituída para tratar do Parque São Francisco, tem o voto de Minerva em caso de empate, e ele é a favor da construção pelo que se sabe. Essa comissão é a mesma que já analisa todos os projetos de loteamentos que passam pela Semmas, tendo recebido mais essa tarefa depois que uma primeira comissão, formada por 11 servidores, não conseguia avançar com os pareceres devido ao volume de discussões.

A análise do EIA não tem prazo para acabar e pode ser afetada a partir da audiência pública marcada para o dia 27 de agosto, no Clube 25 de Julho, das 19h às 22h, onde pessoas da comunidade podem comparecer para ouvir e fornecer informações novas. Para participar, basta se inscrever por meio do link ou código QR disponíveis no edital de convocação no site da prefeitura. Caso haja informações que possam interferir na análise, elas serão consideradas no parecer técnico final do processo, que definirá ou não a emissão da licença ambiental prévia.

A condução meio torta do processo piora quando se chega na questão dos documentos apresentados pelos proponentes nessa fase de Licenciamento Ambiental Prévio. O EIA, depois de aprovado pela comissão, gera o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), uma versão resumida e aberta ao público.  Acontece que este documento, o RIMA, já está feito e disponível publicamente, antes de o estudo ter sido avaliado. Além disso, o EIA e o RIMA apresentam alternativas locacionais de construção diferentes na APA São Francisco, segundo fontes. O EIA apresenta a alternativa da lei (com seis prédios) e a alternativa que os proponentes querem que passe, que ficaria mais perto do parque. O RIMA mostra uma segunda alternativa, que não tem sido considerada nas discussões porque não foi apresentada no estudo, mas que parece a menos pior de todas: a construção mais abaixo no morro, um pouco mais distante do parque e mais perto da área urbana já construída. Existe um outro ponto ainda: a alternativa da não construção também precisa ser levada em conta, tanto no EIA quanto nas discussões da comissão e do CMMA, e pelo que se sabe isso não tem acontecido


Imagem com as duas alternativas locacionais propostas no RIMA
Imagem com as duas alternativas locacionais propostas no RIMA, sendo a alternativa 1 a mais distante do parque

Outro problema é que o RIMA só compara questões de terraplanagem e supressão, sem apresentar uma análise profunda dos impactos ambientais de cada alternativa. O Conselho já tinha dado o aval para a construção dos edifícios, visto que existe a previsão legal para isso. Uma outra comissão, da Secretaria de Planejamento Urbano, também já tinha aprovado o projeto urbanístico no ano passado. Teria também a alternativa de construção prevista na lei, que prevê a edificação de seis prédios com altura menor, mas na última reunião do conselho, Lauro Bacca e a câmara técnica argumentaram que ela causaria mais impacto do que as duas alternativas propostas no EIA/RIMA. Por fim, restam estas perguntas: por que o Conselho não discute a permuta do terreno, a não construção ou uma indenização da prefeitura à Província, comprando esse terreno?


Os impactos


Em seu artigo sobre o assunto, Bacca espera "que essas edificações, com seus futuros moradores, sejamboas vizinhas e agridam o mínimo possível o parque, com vidros antichoques de aves, paredes forradas de jardins verticais, total isolamento de ruídos de tráfego e do próprio prédio, entre outras providências." As duas torres residenciais teriam 20 andares cada, com 66 metros de altura, numa área total de condomínio com 32 mil m², e o prédio comercial teria 8 andares numa área de 5 mil m². Por mais que se obedeçam às mais rígidas formas de construção para minimizar os impactos, ainda haverá impactos, e não são poucos. 

O Parque São Francisco, aberto à visitação de terça a domingo, é lar de centenas de espécies de animais e plantas
As pesquisas científicas realizadas no parque já identificaram 394 espécies de flora (entre nativas e exóticas), 22 espécies de mamíferos, 134 espécies de aves (sendo 67 consideradas raras) e a publicação de duas novas espécies de fungos (Fomitiporia atlantica e F. subtilissima). Como ficará a visitação durante as obras? Como ficarão as pesquisas? É possível garantir que a fauna não será afetada durante e depois da obra? Perguntas que ainda precisam ser respondidas.


Parque São Francisco, no centro de Blumenau
Parque São Francisco, no centro de Blumenau

Mesmo que os edifícios apresentem os atenuantes citados por Bacca, os impactos negativos à biodiversidade de fauna e flora do parque serão inevitáveis. Segundo fontes especialistas ouvidas sobre o assunto, a intensificação do fluxo de veículos e os barulhos provenientes dos edifícios perturbariam a vida dos animais, que vivem hoje em meio ao silêncio dentro do parque (na maior parte do tempo pelo menos, quando não há visitas guiadas). O mesmo pode se dizer em relação às luzes artificiais dos prédios. Além de causar acidentes para aves migratórias, entre outros impactos, as luzes urbanas fazem as aves acordar mais cedo e, por consequência, elas se cansam ao longo do dia mais rapidamente, tornando-se presas mais fáceis. Com as luzes artificiais tão perto, uma parte do parque ficaria permanentemente iluminada, e a mudança na circulação do vento causada pela altura das torres poderia influenciar o microclima da região.

Os animais de forma geral tendem a fugir ou não residir nas bordas de uma floresta, por causa das atividades humanas, o que faria com que os habitantes do parque que hoje moram nessa parte (cercada por vegetação) se mudassem de suas tocas e talvez não mais circulassem por ali, alterando a busca por alimento. Alguns animais silvestres, porém, como o graxaim, tendem a se aproximar de humanos em busca de alimento como uma alternativa mais fácil a que eles teriam na floresta. Isso pode levar à quase domesticação de animais silvestres, o que hoje não acontece.

Existe também um problema criado pela presença de animais domésticos, especialmente cães e gatos, que podem adentrar o parque pela cerca e caçar espécies nativas, além de potencialmente provocar contaminação por meio dos seus excrementos. Essa situação já acontece hoje devido aos animais domésticos das casas que existem próximas ao parque, pelo outro lado do morro. Outra questão importante é o tratamento de esgoto, que precisa levar os efluentes tratados para longe do parque. O impacto também é social, visto que a presença de duas torres residenciais coladas no parque interferiria no fluxo de luz e vento e atrapalharia a experiência dos visitantes, que costumam buscar a Unidade de Conservação como um refúgio dos barulhos da vida urbana e uma forma de conexão consigo mesmos. 

A conservação das espécies, e do maior número possível delas, é fundamental para a continuidade das interações necessárias à vida na Terra, que depende da existência de múltiplos organismos e seus serviços ecossistêmicos. Segundo Mathias Pires, professor do Instituto de Biologia da Unicamp, "a perda de espécies leva à perda de complexidade dos sistemas ecológicos, que é o que mantém esses sistemas funcionando”, explica.  


Da perspectiva humana, o que a humanidade perde com a falta de biodiversidade são os serviços ecossistêmicos realizados pelos mais diversos organismos, como polinização, decomposição, dispersão de sementes e redistribuição da água no planeta, como o fazem as árvores. Sem as plantas, por exemplo, o ciclo hídrico desacelera, o que significa menos acesso à água. “A perda dos serviços ecossistêmicos impacta diretamente nossa saúde, nossa economia, nosso bem-estar, nosso psicológico. Ela implica perda de produtividade de vários produtos do qual nossa economia depende, implica aumento de preço, o que por sua vez causa problemas sociais e de distribuição de alimento, entre outros. Perder biodiversidade é um péssimo negócio. Não só para a biodiversidade, mas para a humanidade”, sentencia Pires.

Os pilares da solução passam por uma mudança essencial de paradigma. “Se existe uma crise da biodiversidade, a gente está no meio dela. A visão de que os organismos e os seres humanos são entidades separadas é parte do problema. Precisamos de uma mudança mais profunda na sociedade na forma como encaramos o consumo e o uso de recursos naturais. A economia é planejada com base em uma premissa de crescimento infinito, mas a Terra tem uma área limitada e recursos limitados”, avalia. "Para uma sustentabilidade a longo prazo, de milhares de anos, a gente precisa de uma mudança radical no modelo socioeconômico. Não dá para se basear na ideia de que a gente vai continuar produzindo cada vez mais e a Terra vai aguentar.” 


Por isso que é preciso conservar áreas naturais cada vez mais, e não menos. Cada oportunidade de conservar o que já existe e ainda expandir, por meio de técnicas de regeneração e reflorestamento, deve ser abraçada e colocada em prática. Mesmo que o projeto esteja previsto em lei, as leis humanas podem ser falhas, assim como ainda é a humanidade, e nesses casos o que deveria prevalecer é o bem comum de todas as espécies que seriam afetadas por determinado empreendimento, não somente a humana. Como registrou o psicanalista Carl Jung, "onde o desejo de poder é primordial, o amor estará ausente". Amor é base para a sustentabilidade, como bem disse Satish Kumar no livro "Amor radical": "Amor à vida é a forma mais elevada de amor e somente uma civilização construída a partir do amor pode ser duradoura". Duradoura porque sabe respeitar o meio do qual depende e no qual compartilha a vida com outras milhares de espécies das quais também depende. Quem ama, cuida, e cuidar de si, dos outros e do meio são ações que só podem existir em conjunto. 
+

Tragédia climática no RS escancara necessidade de mudanças de pensamento e comportamento

Por Letícia Maria Klein •
07 maio 2024



Ilustração de Alberto Benett na Folha de S. Paulo 


"Somos feitos uns dos outros", diz Satish Kumar no livro "Amor radical", lançado em português em 2024 pela editora Bambual. 


Somos feitos das nossas experiências, das nossas interações com os outros seres, das emoções e sentimentos que vivenciamos desde o nascimento, de tudo o que lemos, vemos e ouvimos, do que damos e recebemos, de tudo que pensamos e fazemos, do que é feito conosco, de tudo o que nos alimenta, física e espiritualmente. Somos feitos dos nossos pais, amigos, conhecidos e até dos "estranhamentos". 


Somos feitos de carne, osso, sangue, alma, carbono, água, de minerais e vitaminas que adquirimos dos alimentos que vêm do solo e que passaram por diferentes mãos para chegar até nós. Somos feitos do ar que é gerado por algas marinhas e plantas terrestres, ar que é poluído pelo excesso de gases dos veículos e fábricas e por microplásticos que invadem nossos corpos e os dos animais sem pedir licença. 


Somos feitos da mesma água que abastece rios, lagos, mares e tantos outros seres vivos, todos dependentes do líquido que dá vida. Somos feitos do solo que nos sustenta e gera vida, que por sua vez nos alimenta com seus frutos e nos abriga com sua madeira, entre tantos outros presentes que não comumente reconhecemos nem valorizamos.  


Somos feitos das consequências de tudo que causamos - e tudo que causamos têm consequências, sejam pequenas ou grandes, boas ou más, individuais ou coletivas. Nós somos enquanto estamos em constante troca com o meio que nos cerca. 


Envenenar o solo com agrotóxicos, poluir o ar com gases nocivos, sujar a água com produtos químicos e plásticos, consumir sem critérios - sem pensar na necessidade da compra, na cadeia produtiva, na vida útil e no futuro descarte do produto, na responsabilidade social e ambiental das empresas - e votar em políticos que não pensam holisticamente e em longo prazo significa prejudicar a nós mesmos, agora e depois. 


As mudanças climáticas, que têm se manifestado na forma de eventos intensos e cada vez mais frequentes em todo o planeta - incluindo as enchentes no Rio Grande do Sul - são consequências dos comportamentos egoístas, individualistas, imediatistas e desconectados do meio e dos outros seres vivos que a humanidade tem tido nos últimos 400 anos principalmente (partindo da expansão do pensamento cartesiano e da Revolução Industrial). 


Agimos como se nossas ações não tivessem repercussão ou impacto sobre tudo o que nos cerca, como se fôssemos totalmente independentes e separados do solo, da atmosfera, da água e dos outros seres vivos que abrigam este mesmo planeta Terra onde vivemos. É um absurdo pensar que podemos ter um modelo econômico de crescimento infinito num mundo com bens naturais limitados, e ainda assim é dessa forma que a maioria absoluta das sociedades está estruturada. As consequências disso são inevitáveis e já chegaram, trazendo o aviso de que a situação vai piorar se nós não modificarmos nossas linhas de pensamento e ação. 


Precisamos mudar nossos comportamentos enquanto indivíduos, coletivos, instituições e estruturas sociais. O que fazemos reverbera no todo, que depois retorna a nós mesmos. Mudanças climáticas não são somente um assunto ou um problema ambiental, assim como nenhum outro é, porque tudo o que afeta o ambiente afeta diretamente a sua biodiversidade, à qual pertence a espécie humana. Segundo informações do Observatório do Clima nesta semana, vinte e cinco projetos de lei e três emendas à Constituição estão tramitando no Congresso brasileiro, com alta probabilidade de avanço imediato e que, se aprovados, "causarão dano irreversível aos ecossistemas brasileiros, aos povos tradicionais, ao clima global e à segurança de cada cidadão". Causarão danos a cada um de nós. 


Falar de mudanças climáticas é falar de produção de alimentos, de infraestrutura urbana, de saúde, de desigualdade social (visto que a maioria dos atingidos são as populações mais pobres e marginalizadas), entre outros temas que dizem respeito à vida humana em sociedade. É primordial voltarmos a viver e a ver a vida de maneira holística e sistêmica, compreendendo que estamos todos interligados numa teia existencial complexa e delicada, da qual não é possível sair e da qual dependemos integralmente. 


Somos feitos uns dos outros, então tudo que fazemos aos outros - sejam eles quem ou o que forem - fazemos a nós mesmos. Viver de maneira sustentável é, antes e acima de tudo, valorizar a vida. Não é um tripé com base financeira, é um tripé baseado no amor: a preservação da vida no planeta depende de cuidarmos de nós mesmos, do outro e do meio que nos sustenta, em relações de afeto, respeito e solidariedade. 

+

Projeto Cortina de Fumaça – Fogo e desmatamento na Amazônia

Por Letícia Maria Klein •
30 setembro 2020
Depois de quase um ano, é com muito orgulho que publicamos o Cortina de Fumaça, um projeto desenvolvido pela Ambiental Media, com apoio do Rainforest Journalism Fund, em parceria com o Pulitzer Center. Desde 2018, eu colaboro como repórter com a Ambiental, uma startup de jornalismo que transforma conteúdo científico em jornalismo inovador, atraente e acessível. 

Fogo na Amazônia. Foto: Flavio Forner/Ambiental Media
Fogo na Amazônia. Foto: Flavio Forner/Ambiental Media

O Cortina de Fumaça traz uma abordagem inédita, com sobreposição de bases de dados, que comprova a relação direta entre focos de calor e desmatamento na Amazônia. Com reportagem especial, visualização de dados em mapas interativos, ilustrações e fotos, mostramos como o fogo é parte inerente do processo de desmatamento, porque ele é a ferramenta usada para eliminar as árvores, com o objetivo de abrir áreas de pastagem e monocultura. Apesar dos cientistas já alertaram para isso há muito tempo, nenhum projeto jornalístico tinha mostrado isso de maneira tão clara e irrefutável. Em tempos de narrativas oficiais que distorcem a realidade, os dados são fundamentais para dispersar as cortinas de fumaça que tentam negar o inegável. 

Mapa mostra sobreposição de dados de desmatamento (laranja) e fogo (vermelho). Fonte: Laura Kurtzberg/Ambiental Media
Mapa mostra sobreposição de dados de desmatamento (laranja) e fogo (vermelho). Fonte: Laura Kurtzberg/Ambiental Media.

   
Amostra do mapa interativo que mostra focos de calor em imóveis rurais na Amazônia. Os quatro municípios que mais desmataram em 2019 também encabeçam a lista dos que tiveram mais focos de calor.

O projeto nasceu em setembro de 2019, quando começamos a pensar e elaborar a proposta de inscrição para o edital do Pulitzer, mas a ideia já tinha surgido muito antes, em viagem do meu editor, Thiago Medaglia, para a Amazônia. “Em reportagens pontuais, é difícil derrubar narrativas falsas sobre assuntos densos e complexos, então eu acredito que um caminho para o jornalismo é fazer trabalhos elaborados, detalhados, que mostrem a verdade de uma maneira bonita, interessante e visual, assim conseguimos derrubar a mentira por meio de uma exposição meticulosa da verdade. Vamos fazer outros projetos nessa linha”, disse Thiago.  

O resultado do edital saiu em dezembro (um ótimo presente de Natal!) e começamos a trabalhar em janeiro deste ano. Nosso time multidisciplinar de oito pessoas funcionou muito bem! Que prazer trabalhar com esse pessoal e quanto aprendizado ao longo destes meses. Thiago, Laura, Maria, Flavio, Felipe, Meiguins e Marcos, obrigada e parabéns, nós conseguimos! 

Fogo usado em pastagens para renovar o capim para o gado. Foto: Flavio Forner/Ambiental Media
Fogo usado em pastagens para renovar o capim para o gado. Foto: Flavio Forner/Ambiental Media

Somando as atividades de toda a equipe, foram centenas de horas de reuniões semanais, pesquisas em artigos científicos, entrevistas com fontes (foram 16, mas nem todos são citados na reportagem), redação, edição, download de bases de dados, elaboração dos mapas interativos, criação das ilustrações, seleção e edição de fotos, desenvolvimento do site e divulgação. Foi um trabalho longo, detalhista, por vezes extenuantes, e totalmente gratificante. 

Área desmatada e queimada. Fogo usado em pastagens para renovar o capim para o gado. Foto: Flavio Forner/Ambiental Media
Área desmatada e queimada. Fogo usado em pastagens para renovar o capim para o gado. Foto: Flavio Forner/Ambiental Media

Lançamos a plataforma no dia 23 de setembro de 2020, e logo teve repercussão nos principais veículos nacionais: National Geographic Brasil, Folha de S. Paulo, Jornal Hoje, Globo News, G1 e Época, além de Mongabay Brasil e Mongabay (versão internacional). A National Geograpich republicou parte do nosso material (por contrato), e foi muito emocionante ver meu nome pela primeira vez na revista (agora digital) para a qual eu sempre quis escrever. 

Pedro Pantoja, morador da comunidade de Jamaraquá, no Floresta Nacional do Tapajós, personagem da nossa reportagem. Os pequenos agricultores, ribeirinhos e indígenas são acusados pelo governo de serem os principais responsáveis pelo aumento dos focos de calor na Amazônia. Apesar de usarem o fogo na agricultura de subsistência, mostramos que a acusação é infundada. Foto: Flavio Forner/Ambiental Media
Pedro Pantoja, morador da Floresta Nacional do Tapajós, personagem da nossa reportagem. Pequenos agricultores, ribeirinhos e indígenas são acusados pelo governo de serem os principais responsáveis pelo aumento dos focos de calor na Amazônia. Apesar de usarem o fogo na agricultura de subsistência, mostramos que a acusação é infundada. Foto: Flavio Forner/Ambiental Media

Sou imensamente grata por ter participado deste projeto, que não só me deu uma rica experiência jornalística e expandiu minha visão de mundo, como estampou em rede nacional uma verdade que não pode mais ser mascarada. 

Minhas segundas à tarde já parecem vazias sem reunião. Quem venham os próximos projetos!

Um ecobeijo e até breve.

* Atualização em 09/10/2020 para incluir os links da Mongabay.
+

Julho sem plástico e o que sabemos sobre a poluição plástica nos oceanos

Por Letícia Maria Klein •
27 junho 2019
Todos os anos no mês de julho, o The Story of Stuff Project convida todos a tomarem o juramento do julho sem plástico: “Eu juro evitar plásticos de uso único (descartáveis), reutilizar ou reciclar plásticos que utilizo, educar outras pessoas sobre os resíduos plásticos e fazer ações que ajudem o planeta a se libertar do plástico”. A hashtag #breakfreefromplastic viraliza nas redes sociais nesta época, acompanhada por fotos de muitas ações que podemos ter no dia a dia para deixar de lado os descartáveis e reduzir a produção de resíduos plásticos.

Movimento Break Free From Plastic
Movimento Break Free From Plastic
Aproveitando a deixa, o Instituto 5 Gyres enviou um e-mail aos seus assinantes com as perguntas mais recebidas sobre a poluição por plásticos no mundo. São questões bem interessantes, que compartilho neste post.

Qual é a informação mais recente sobre a quantidade de plásticos nos oceanos hoje?
O que se sabe é que há uma ligeira tendência de aumento ao longo do tempo. Nossos modelos mais recentes, trabalhando com Win Cowger da UC Riverside, mostram uma estimativa de 110.000 toneladas de plástico flutuante nos oceanos do mundo. Por ser flutuantes, essa conta não inclui os plásticos que estão na coluna de água, no fundo do mar ou nas costas remotas em todo o mundo, que é onde a grande maioria dos plásticos oceânicos está.

As bioenzimas e os micróbios podem consumir toda a poluição plástica?
Não é difícil encontrar alguns organismos naturais que consomem plástico. Mas aqui estão as perguntas que sempre surgem:
1. O que acontece se um organismo geneticamente modificado que come plástico é liberado no mundo? Nos oceanos, ele comeria docas de pesca, boias, equipamentos de pesca, barcos e todos os tipos de equipamentos marítimos.
2. Onde, então, esse organismo seria aplicado?
Não é necessário colocá-lo em aterros porque o plástico já está contido e há pouco risco de vazamento. No ambiente? Muito arriscado.
A ideia de micróbios que comem plástico dá grandes manchetes, mas não é uma tecnologia que defendemos para resolver o problema do plástico oceânico. Esse problema é sintoma da má gestão do material em terra. Esse é o problema que precisamos resolver, por meio de políticas que garantam produtos mais inteligentes que sejam economicamente recicláveis ​​e sistemas mais inteligentes que forneçam mercadorias sem a necessidade de embalagens.

Se menos de 10% dos materiais recicláveis são reciclados, devo continuar encaminhando meus resíduos para a reciclagem?
Primeiro, saiba que os atuais sistemas de reciclagem nos EUA e na Europa estão severamente desafiados devido à proibição da China de importar resíduos (e devido à falta de design para reciclagem). [No Brasil, cerca de 3% dos resíduos são reciclados.] As possibilidades são que a maior parte do plástico que você está separando direito vai direto para o aterro sanitário ou está sendo guardada em armazéns. Evite comprar plásticos e embalagens de uso único, se for possível. Enquanto isso, você pode continuar reciclando, mas ainda melhor: elimine plásticos de uso único de sua lista de compras e apoie a responsabilidade estendida do produtor na sua comunidade, que é uma política que exige que os produtos e embalagens tenham um plano real e economicamente viável para que sejam recuperados quando se tornarem resíduos.

Estou tentando ser lixo zero. Como faço?
Sempre dizemos às pessoas que o primeiro passo para o desperdício zero é lembrar que, com qualquer coisa que você compre, vem a embalagem.
Se você quiser se envolver ainda mais, encontre seu grupo local de lixo zero ou procure em sites, blogs e livros sobre o que fazer para não gerar desperdícios em casa, na escola e no escritório. Lixo zero é um conjunto de valores. Se você consegue transformar sua casa, escola ou escritório em um local com cultura de desperdício zero, inserir esse conceito na missão da organização ou instituição, então isso se torna parte de quem você é.

Aqui no blog tem muitos posts com dicas que vão te ajudar a produzir menos resíduos no seu dia a dia. Também vale a pena acompanhar o site e as redes sociais do Instituto Lixo Zero Brasil e procurar coletivos lixo zero nas redes sociais, além de outros blogs e canais que falam sobre o tema, como Casa sem lixo e Uma vida sem lixo. Uma mudança de hábito leva a outras, e muitas te tornam uma pessoa sustentável.

Um ecobeijo e até breve.
+

Impactos e perspectivas ambientais da greve dos caminhoneiros

Por Letícia Maria Klein •
28 maio 2018
Mais de 64 milhões de aves sacrificadas, morte de pelo menos 1 bilhão de aves e 20 milhões de suínos nos próximos cinco dias por falta de alimentação adequada, prejuízo de bilhões de reais nos mais diversos setores da economia, descarte de mais de 300 milhões de litros de leite, diminuição da frota do transporte coletivo, falta de combustíveis nos postos, escolas e universidades fechadas, aumento do preço de diversos alimentos frescos, voos cancelados, hospitais defasados de medicamentos, comida e dos seus próprios profissionais, que têm dificuldade de acesso. Tudo isso e ainda mais que pode vir a acontecer é resultado da greve dos caminhoneiros, que começou no dia 21 de maio.

Protestos na BR-470, em SC
Foto: PMSC/Divulgação
Os impactos socioambientais são grandes e muitos. Um deles é a morte de uma quantidade tão grande de animais. Muitos estão sendo enterrados porque não tem caminhão para retirá-los, mas a decomposição de tantos seres no mesmo espaço pode poluir o lençol freático, e por consequência rios e lagos, sendo potencialmente prejudicial à saúde pública. Por falar em saúde, os hospitais também estão sofrendo com a falta de recolhimento de resíduos sólidos. Se continuar, a coleta de resíduos nas cidades também ficará prejudicada e as montanhas de lixo se transformarão em focos de vetores transmissores de doenças.

O comércio e a indústria estão sendo diretamente afetados, eventos estão sendo cancelados ou tem pouco público, pessoas estão correndo o risco de ficarem sem tratamento nos hospitais, toneladas de alimento e outros recursos estão sendo desperdiçados, causando um grande problema socioambiental em termos de geração de lixo, perda de matéria-prima, poluição e gastos de dinheiro. Até o abastecimento de água fica comprometido, pois podem faltar os produtos químicos necessários ao processo de limpeza nas estações de tratamento de água.

Os caminhoneiros têm seus motivos para protestar e todos têm direito de se manifestar contra o que lhes prejudicam. Porém, quando essa manifestação sobrepõem o direito de outras pessoas de atender a suas necessidades ou quando fere os diretos básicos de cada cidadão, o ato continua legítimo? É ético submeter milhões de pessoas e outros seres vivos ao sofrimento, causando caos? Tem um ditado que diz que o escândalo é necessário, mas ai daquele que o provocar. Esse escândalo está muito grave, mas como tudo na vida tem seu lado positivo e negativo, a greve dos caminhoneiros tem nos mostrado que precisamos de reformas urgentes e grandes no país.

Sofremos com a alta carga tributária e seu mau uso pelo poder público em vários momentos. O problema não é só o diesel. Porém, reduzir custos de um lado e compensar do outro, como prevê a Lei de Responsabilidade Fiscal através do aumento de outros tributos, não vai à raiz da questão. Sempre tem alguém que paga a conta, nada sai de graça para ninguém. Isso se chama externalização de custos. Existe uma ideia de que o governo pode arcar com as contas, pode bancar os mais variados gastos, assim nós não precisamos pagar. Só que isso é uma falácia. Quem alimenta a máquina pública, afinal, somos nós, cada um dos cidadãos do país. 

Quanto mais tempo a greve dura, mais evidente é a necessidade de repensar e reestruturar o sistema de transporte de cargas no país, privilegiando ferrovias, hidrovias e combustíveis renováveis, que não tenham origem no petróleo. É fundamental diminuir a dependência da sociedade em combustíveis fósseis, que não se renovam e cujo processo de extração deve ficar cada vez mais caro. Dar subsídios ao diesel só prolonga um problema que precisa ser solucionado logo, com tecnologias limpas e inovação em sustentabilidade. Além disso, a situação da maioria das estradas no país, pelas quais passam os caminhoneiros dia após dia, são deploráveis. Como mostrou essa reportagem, o uso de caminhões para transporte de cargas no Brasil é caro, ineficiente e perigoso.

Com a falta de combustíveis para carros de passeio, o número de bicicletas aumentou nas ruas aqui de Blumenau. A quantidade de pessoas no transporte coletivo também. O investimento em mobilidade urbana sustentável é uma das ferramentas da cidade carbono zero e traz vários benefícios, como economia de dinheiro (em comparação a ter o carro próprio), redução da emissão de poluentes, rapidez no trânsito e exercício físico (no caso da bicicleta). Cidades do futuro também serão mais eficientes em termos de geração de energia limpa e estrutura completa de saúde, educação, produção e entretenimento num raio de curtas distâncias.

Que esse cenário de crise que se vive hoje no Brasil, típico de filme futurista, seja muito mais um convite às mudanças rumo ao planeta sustentável que precisamos do que um prenúncio de uma realidade distópica.

+

Um mundo de plástico (e como estamos sendo dominados por ele)

Por Letícia Maria Klein •
16 novembro 2017
O plástico está em todo lugar: da escova de dente à geladeira, do carro ao avião, das nossas roupas sintéticas ao oceano, do plâncton a nós mesmos. Sim, é verdade. O plástico já conseguiu entrar nos nossos corpos. Pesquisas recentes encontraram micropartículas de plástico nos peixes, no sal marinho, na água da torneira, na cerveja, no mel e no açúcar. Nos rios e mares, o lixo plástico vai se desintegrando e as partículas minúsculas vão sendo ingeridas pelos animais, do plâncton à baleia. Cientistas da Universidade de Ghent, na Bélgica, calcularam que as pessoas que comem frutos do mar ingerem até 11 mil micropartículas de plástico por ano!

Ainda não se sabe o efeito disso no corpo humano. Nos oceanos, por outro lado, os efeitos são visíveis, contabilizáveis e catastróficos. Até 12,7 milhões de toneladas de plástico todos os anos, o equivalente a um caminhão de lixo por minuto de acordo com as Nações Unidas, somando-se as 150 milhões de toneladas que atualmente circulam nos ambientes marinhos. Incluem-se aí sacolas, escovas de dente, embalagens, garrafas, copos, canudos e muitos outros itens de plástico que compõem 90% do lixo presente lá. Se esse cenário persistir, estima-se que em 2050 haja mais plástico do que peixe nos oceanos, de acordo com pesquisa da Fundação Ellen MacArthur. Isso pode representar a morte dos oceanos e, consequentemente, de pessoas. Um dos motivos seria a deficiência de oxigênio, pois as cianobactérias (também conhecidas como algas azuis) produzem de 60% a 80% do oxigênio que nós respiramos. Nós e outros milhares de espécies.


Microplástico dentro de um plâncton. Fonte: Corin Liddle/OrbMedia

Futuro assustador, não? A realidade já é bastante assustadora, principalmente se vamos aos números da poluição por plástico. Desde o início de sua produção industrial em 1950 até 2015, já foram produzidas 8,3 bilhões de toneladas de plástico, das quais 80% estão em aterros sanitários ou espalhadas pelo mundo, poluindo ambientes naturais e construídos. A quantidade produzida desde 2000 se equipara ao total das cinco décadas anteriores. Todo ano a produção aumenta quase 300 milhões de toneladas, sendo que 40% são usados apenas uma vez e descartados e 9% são reciclados. As garrafas plásticas representam uma grande parte desse montante. As pessoas compram um milhão delas por minuto ao redor do mundo, chegando ao total de 480 bilhões de garrafas vendidas em 2016. Se empilhadas, passariam da metade da distância até o sol. A previsão é que esse número aumente 20% até 2021, totalizando 583,3 bilhões por ano, e quadruplique até 2050!

A maioria das garrafas plásticas é usada para consumo de água e as maiores marcas de bebidas respondem por números astronômicos. A Coca-Cola produz mais de um bilhão por ano, o que dá 3.400 por segundo, conforme uma análise feita pelo Greenpeace. Um dos grandes problemas é que quase tudo provém de material virgem. As seis maiores empresas do ramo usam em média apenas 6.6% de plástico PET reciclado em seus produtos, sem metas de aumento dessa porcentagem. De acordo com a Federação Britânica de Plásticos, a produção de garrafas com 100% de material reciclado economiza 75% de energia comparada à fabricação de garrafas com matéria-prima virgem.


Praia com lixo plástico em Gana. Fonte: Christian Thompson/EPA/The Guardian

Na natureza, especialmente nos oceanos onde vai parar a maior parte, a garrafa plástica pode levar até 450 anos para se decompor, sendo que sua decomposição significa que ela vai se desintegrar em milhões de micropartículas de plástico. Essas partículas já foram encontradas em sal marinho no Reino Unido, França, Espanha, China e Estados Unidos, onde a Universidade do Estado de Nova York em Fredonia e a Universidade de Minnesota realizaram uma pesquisa, liderada pela professora Sherri Ann Mason. Foram analisados 12 tipos de sal, incluindo 10 marinhos, comprados em lojas estadunidenses ao redor do mundo. Ela descobriu que cidadãos dos EUA poderiam estar ingerindo cerca de 660 partículas de plástico por ano, se consumidas as 2.3g de sal recomendadas por dia. Níveis detectáveis de bisfenol-A, um composto do policarbonato, foram encontrados na urina de 95% dos adultos daquele país.

Em um estudo espanhol, os pesquisadores encontraram plástico em todas as 21 amostras de sal de cozinha testadas. O tipo mais comum de plástico identificado foi o PET (polietileno tereftalato). Outro grupo de cientistas da França, Reino Unido e Malásia encontrou micropartículas de plástico em 16 de 17 amostras de sal de oito países e a maioria era de polietileno e polipropileno. A primeira dessas pesquisas foi realizada na China, em 2015, e encontrou microplásticos provenientes de esfoliantes, cosméticos e garrafas em 15 amostras de sal vendido no país. Mason disse que espera que essas pesquisas não façam as pessoas simplesmente trocarem a marca do sal que usam:

"As pessoas querem se desconectar e dizer: ‘Está tudo bem se eu for ao Starbucks todos os dias e pegar uma xícara de café descartável’. Nós temos que nos concentrar no fluxo de plástico e na onipresença dos plásticos em nossa sociedade e encontrar outros materiais para usar em vez dele."

A ubiquidade dos plásticos nos atinge num aspecto extremamente sensível e diário: o consumo de águaUma pesquisa exclusiva feita pela Orb Media em parceria com a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de Minnesota revelou a presença de fibras de plástico em 83% das amostras de água da torneira coletadas nos cinco continentes, de Nova York a Nova Déli. A maior taxa de contaminação foi nos Estados Unidos, onde encontraram fibras plásticas em 94% das 33 amostras coletadas em lugares como os prédios do congresso, da Agência de Proteção Ambiental e na Trump Tower. No Líbano, foram 16 amostras, com a mesma porcentagem de contaminação. Em seguida vem a Índia, com 82% das 17 amostraram contaminadas e Uganda, com 81% das 26 coletas. Na Indonésia, 76% das 21 amostras tinham microplásticos e no Equador, 75% de 24. Por fim ficou a Europa, com 72% das 18 amostras contaminadas. O número médio de fibras encontradas em cada uma das amostras de 500 ml variou de 1.9 na Europa a 4.8 nos EUA. A Folha de S. Paulo participou deste levantamento e enviou ao laboratório da faculdade 10 amostras coletadas em São Paulo, em uma torneira de cozinha na região oeste, torneiras de banheiro do Parque Ibirapuera e do MASP. Nove apresentaram fibras.


Fibras de plástico na água em Nova Déli, Índia. Fonte: OrbMedia.

Da água para a cerveja é um pulinho. Um estudo alemão encontrou fibras e fragmentos plásticos em todas as 24 amostras de marcas de cerveja testadas. Ainda na Alemanha, e também na França, Itália, Espanha e México, todas as 19 amostras de mel analisadas tinham fibras e fragmentos plásticos. Esta mesma pesquisa também coletou amostras de cinco marcas de açúcar refinado e (adivinha!) todas tinham plástico. Outra fonte de microplásticos é o ar que respiramos. Pesquisadores franceses descobriram, em 2015, que Paris é recoberta com de três a 10 toneladas de fibras plásticas todos os anos, que vão parar, inclusive, dentro de casa. O mesmo estudo também identificou a presença de plástico no esgoto e em água doce, como a do Rio Sena.

Uma das fontes da emissão de fibras plásticas no ar é o desgaste de pneus e marcações rodoviárias. Outra fonte muito significativa são as roupas sintéticas, que liberam até 700 mil fibras por lavagem na tubulação. Elas vão parar nos rios e oceanos quando não são retidas na estação de tratamento de água. Nos Estados Unidos, 29 toneladas, cerca de metade do que sai dos encanamentos, vai parar nas vias fluviais todo santo dia. Quando secadas na máquina, as fibras também são liberadas, indo parar geralmente no ar.

Um dos perigos do plástico é que ele tem afinidade química com contaminantes presentes no ambiente, como pesticidas e metais, explica Felipe Gusmão, oceanógrafo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Santos. Assim, quando ingeridos por seres vivos os microplásticos liberam as toxinas no organismo. Um estudo da universidade comprovou que os contaminantes liberados pelos microplásticos são tóxicos para larvas de mexilhões. Richard Thompson, professor na Universidade de Plymouth, disse que “ficou claro desde cedo que o plástico liberaria esses produtos químicos e que, de fato, as condições do intestino facilitariam uma liberação bem rápida”. Na sua pesquisa, ele encontrou plástico em um terço dos peixes no Reino Unido, entre eles bacalhau, arinca e cavalinha, além de mariscos.

Essas pesquisas evidenciam não só problemas ambientais, mas sociais e econômicos. O lixo é uma invenção nossa. A espécie humana é a única que produz materiais que não podem ser aproveitados por outros seres e nem compostados na natureza. Essa situação provoca doenças, poluição, degradação de ecossistemas, esgotamento de bens naturais, morte de milhões de animais e perdas de bilhões de reais por ano. Essa situação reflete a desconexão das pessoas com a natureza; evidencia os efeitos dos modos de produção e consumo lineares, de estilos de vida e de padrões de sociedades pautados no imediatismo, no individualismo, na ganância e na ilusão de felicidade e bem-estar a distância de um cartão de crédito.


Fonte: UniPlanet

A problemática dos resíduos sólidos está no mesmo patamar de gravidade das mudanças climáticas, segundo ativistas. Num planeta vivo, constituído por uma teia de vidas, todos os problemas socioambientais estão interligados e se afetam mutuamente, criando uma crise global e profunda. “Mas não é possível que vivamos para perpetuar os problemas no mundo, tem que haver mais do que viver para ganhar uns trocados.” Economia e ecologia estão intrinsecamente ligadas, porque as duas são sobre casa (eco, do grego oikos, significa casa). Nossa grande casa comum. Economia quer dizer administrar a casa, cuidar de tudo que aqui existe para que continue existindo. Vamos combinar que, de forma geral, não é isso que estamos fazendo. Como disse Margaret Atwood neste artigo, precisamos de uma absoluta Reforma dos Plásticos.

Ele sugere a utilização de substitutos orgânicos e biodegradáveis para realizar as tarefas hoje feitas por plásticos, inventar métodos para filtrar e retirar os plásticos dos rios e mares e recolhê-los antes de chegarem aos oceanos. Mas, antes disso, precisamos mudar a maneira como enxergamos e nos relacionamos com o material. Na teoria, todos os tipos de plástico podem ser reciclados, mas alguns são mais difíceis e, portanto, não tem viabilidade econômica. A questão financeira é importante, visto que é uma das bases da maioria das sociedades. Cerca de 400 garrafas plásticas são vendidas por segundo no Reino Unido e metade é reciclada. Na Alemanha, onde as pessoas são reembolsadas ao devolver as garrafas, o índice de reciclagem vai a 98%.

Ao mesmo tempo em que veneramos o plástico por sua versatilidade e durabilidade, tratamos o material com descaso quando o taxamos de descartável e o utilizamos dessa forma. Qual é a lógica de retirar petróleo do subsolo, gastar bilhões de reais em processos e mão-de-obra, investir tempo, usar e poluir bens naturais para produzir coisas que vão ser subaproveitadas e enterradas (quando não largadas por aí), onde ficarão centenas de anos poluindo? É da nossa casa que estamos falando. É o planeta onde vivemos que estamos destruindo. Mas não precisa ser assim. Ou melhor, não pode ser assim. Que saibamos usar nossa racionalidade, consciência, habilidades e bons sentimentos para a prosperidade de todos e compreender o que de fato significa viver no planeta Terra.


+

© 2013 Sustenta Ações – Programação por Iunique Studio