Com 23 hectares, o Parque Natural Municipal São Francisco de Assis está localizado no topo de um morro no centro de Blumenau, perto do primeiro shopping center da cidade. Por ficar no topo de um morro, a mata em volta acabou preservada também, o que segundo a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (9.985/2000) é conhecido como zona de amortecimento: o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade.
Essa situação pode mudar muito em breve, porque existe um projeto de construção de três torres no entorno do parque, sendo duas residenciais e uma comercial. As construções não só estão previstas na lei de criação do parque (nº 99/95) como condicionam a existência dele aos prédios novos que seriam erguidos!
Desenho das torres residenciais apresentado no Relatório de Impacto Ambiental |
A situação surgiu a partir da doação de uma grande área de terras que a Província Franciscana da Imaculada Conceição (Colégio Bom Jesus) fez ao município em 1995. Como conta Lauro Bacca neste artigo, então presidente da antiga Fundação Municipal do Meio Ambiente (hoje Secretaria), a Província não sabia o que fazer com o terreno, localizado numa Zona de Proteção Ambiental, que apesar do nome permitia a ocupação residencial unifamiliar sob certas restrições. Para evitar isso, a solução foi destinar a área de floresta mais preservada à criação de um parque e as áreas mais degradadas à construção, ficando 223 mil m² para o parque e 70 mil m² disponíveis para ocupação humana.
Paralelamente, a Lei Complementar nº 98/95 criou a Área de Proteção Ambiental São Francisco de Assis, destinada a proteger o entorno do parque, constituída por uma Zona de Transição, "com áreas sob fortes pressões sociais e relativamente comprometidas com a urbanização, devendo harmonizar a integração urbana com o ambiente natural", diz a lei. "Passado esse tempo todo, no meio do qual aconteceu a tragédia de 2008", conta Bacca no artigo, decidiu-se trocar a quantidade de seis prédios com altura menor, conforme a lei, por três prédios com altura maior. Dessa forma, o parque ganhou outros 7 mil m², chegando ao total de 230 mil m² que tem hoje.
Segundo Bacca, o cumprimento do acordo acarretará a escrituração dos 23 hectares em nome do município, significando a posse legal e consequente efetivação do Parque São Francisco. Até hoje, o terreno continua no nome da Província, e como a construção dos prédios é uma condicionante para a doação, somente após a edificação é que a área passaria a ser pública. Essa parte da efetivação legal do parque é boa, mas a construção em si das torres e suas consequências não tem nada de positivo, por causa dos impactos ambientais e também sociais.
O Ministério Público de Santa Catarina se manifestou por meio de um laudo técnico em relação à localização, dizendo que "caso não seja identificada alternativa técnica locacional que concilie o respeito às restrições legais e ambientais incidentes sobre a área investigada e os interesses do empreendedor, sugere-se a permuta desta área por outra com aptidão para a ocupação pretendida e a anexação da primeira ao Parque Natural Municipal São Francisco de Assis". Ou seja, a prefeitura poderia trocar a área por outro terreno público, e seria melhor construir em outro lugar que não tivesse tantos poréns quanto ao impacto sobre um ecossistema preservado e sobre uma região da cidade que já recebe um fluxo alto de veículos, devido à proximidade do shopping e por estar no centro.
Na última reunião do Conselho Municipal do Meio Ambiente (CMMA), realizada no dia 13 de agosto, foi questionada a necessidade de alteração da lei para inclusão do novo projeto, que prevê três torres ao invés de seis como estava inicialmente previsto. Afinal, como pode estar sendo discutido um projeto diferente do que está previsto na legislação? Outra questão é que o parque existe e funciona há quase 30 anos, mas os prédios nunca foram erguidos, então como fica a legalidade da situação? Se o parque é uma realidade há décadas, ele deveria seguir a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (nº 9.985/2000) quanto ao respeito à zona de amortecimento, que deve ser de no mínimo 3 km pela Resolução Conama 428/2010 para empreendimentos que requerem licenciamento ambiental.
Esse imbróglio jurídico precisa ser resolvido para que a questão possa avançar, tanto para o sim quanto para o não à construção das torres. Quanto à isso, existe a possibilidade de a Procuradoria-Geral do Município ser acionada (e na última reunião do Conselho a maioria dos presentes entendeu pela necessidade de questionamento à PGM, conforme ata), mas há forças contrárias a isso dentro da própria Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas), que buscam a aprovação do projeto sem ainda terem consultado diretamente o departamento jurídico sobre a aplicação das resoluções legais, enquanto há também forças que requerem a solicitação, segundo fontes ligadas ao caso.
A comissão da Semmas designada para o processo, composta por seis membros de diferentes áreas e nomeada pela portaria 29.695/2024, está atualmente avaliando o Estudo de Impacto Ambiental (EIA). O coordenador, que é quem relata o processo na câmara técnica do CMMA constituída para tratar do Parque São Francisco, tem o voto de Minerva em caso de empate, e ele é a favor da construção pelo que se sabe. Essa comissão é a mesma que já analisa todos os projetos de loteamentos que passam pela Semmas, tendo recebido mais essa tarefa depois que uma primeira comissão, formada por 11 servidores, não conseguia avançar com os pareceres devido ao volume de discussões.
A análise do EIA não tem prazo para acabar e pode ser afetada a partir da audiência pública marcada para o dia 27 de agosto, no Clube 25 de Julho, das 19h às 22h, onde pessoas da comunidade podem comparecer para ouvir e fornecer informações novas. Para participar, basta se inscrever por meio do link ou código QR disponíveis no edital de convocação no site da prefeitura. Caso haja informações que possam interferir na análise, elas serão consideradas no parecer técnico final do processo, que definirá ou não a emissão da licença ambiental prévia.
A condução meio torta do processo piora quando se chega na questão dos documentos apresentados pelos proponentes nessa fase de Licenciamento Ambiental Prévio. O EIA, depois de aprovado pela comissão, gera o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), uma versão resumida e aberta ao público. Acontece que este documento, o RIMA, já está feito e disponível publicamente, antes de o estudo ter sido avaliado. Além disso, o EIA e o RIMA apresentam alternativas locacionais de construção diferentes na APA São Francisco, segundo fontes. O EIA apresenta a alternativa da lei (com seis prédios) e a alternativa que os proponentes querem que passe, que ficaria mais perto do parque. O RIMA mostra uma segunda alternativa, que não tem sido considerada nas discussões porque não foi apresentada no estudo, mas que parece a menos pior de todas: a construção mais abaixo no morro, um pouco mais distante do parque e mais perto da área urbana já construída. Existe um outro ponto ainda: a alternativa da não construção também precisa ser levada em conta, tanto no EIA quanto nas discussões da comissão e do CMMA, e pelo que se sabe isso não tem acontecido.
Imagem com as duas alternativas locacionais propostas no RIMA, sendo a alternativa 1 a mais distante do parque |
Outro problema é que o RIMA só compara questões de terraplanagem e supressão, sem apresentar uma análise profunda dos impactos ambientais de cada alternativa. O Conselho já tinha dado o aval para a construção dos edifícios, visto que existe a previsão legal para isso. Uma outra comissão, da Secretaria de Planejamento Urbano, também já tinha aprovado o projeto urbanístico no ano passado. Teria também a alternativa de construção prevista na lei, que prevê a edificação de seis prédios com altura menor, mas na última reunião do conselho, Lauro Bacca e a câmara técnica argumentaram que ela causaria mais impacto do que as duas alternativas propostas no EIA/RIMA. Por fim, restam estas perguntas: por que o Conselho não discute a permuta do terreno, a não construção ou uma indenização da prefeitura à Província, comprando esse terreno?
Os impactos
Em seu artigo sobre o assunto, Bacca espera "que essas edificações, com seus futuros moradores, sejamboas vizinhas e agridam o mínimo possível o parque, com vidros antichoques de aves, paredes forradas de jardins verticais, total isolamento de ruídos de tráfego e do próprio prédio, entre outras providências." As duas torres residenciais teriam 20 andares cada, com 66 metros de altura, numa área total de condomínio com 32 mil m², e o prédio comercial teria 8 andares numa área de 5 mil m². Por mais que se obedeçam às mais rígidas formas de construção para minimizar os impactos, ainda haverá impactos, e não são poucos.
O Parque São Francisco, aberto à visitação de terça a domingo, é lar de centenas de espécies de animais e plantas. As pesquisas científicas realizadas no parque já identificaram 394 espécies de flora (entre nativas e exóticas), 22 espécies de mamíferos, 134 espécies de aves (sendo 67 consideradas raras) e a publicação de duas novas espécies de fungos (Fomitiporia atlantica e F. subtilissima). Como ficará a visitação durante as obras? Como ficarão as pesquisas? É possível garantir que a fauna não será afetada durante e depois da obra? Perguntas que ainda precisam ser respondidas.
Parque São Francisco, no centro de Blumenau |
Mesmo que os edifícios apresentem os atenuantes citados por Bacca, os impactos negativos à biodiversidade de fauna e flora do parque serão inevitáveis. Segundo fontes especialistas ouvidas sobre o assunto, a intensificação do fluxo de veículos e os barulhos provenientes dos edifícios perturbariam a vida dos animais, que vivem hoje em meio ao silêncio dentro do parque (na maior parte do tempo pelo menos, quando não há visitas guiadas). O mesmo pode se dizer em relação às luzes artificiais dos prédios. Além de causar acidentes para aves migratórias, entre outros impactos, as luzes urbanas fazem as aves acordar mais cedo e, por consequência, elas se cansam ao longo do dia mais rapidamente, tornando-se presas mais fáceis. Com as luzes artificiais tão perto, uma parte do parque ficaria permanentemente iluminada, e a mudança na circulação do vento causada pela altura das torres poderia influenciar o microclima da região.
Os animais de forma geral tendem a fugir ou não residir nas bordas de uma floresta, por causa das atividades humanas, o que faria com que os habitantes do parque que hoje moram nessa parte (cercada por vegetação) se mudassem de suas tocas e talvez não mais circulassem por ali, alterando a busca por alimento. Alguns animais silvestres, porém, como o graxaim, tendem a se aproximar de humanos em busca de alimento como uma alternativa mais fácil a que eles teriam na floresta. Isso pode levar à quase domesticação de animais silvestres, o que hoje não acontece.
Existe também um problema criado pela presença de animais domésticos, especialmente cães e gatos, que podem adentrar o parque pela cerca e caçar espécies nativas, além de potencialmente provocar contaminação por meio dos seus excrementos. Essa situação já acontece hoje devido aos animais domésticos das casas que existem próximas ao parque, pelo outro lado do morro. Outra questão importante é o tratamento de esgoto, que precisa levar os efluentes tratados para longe do parque. O impacto também é social, visto que a presença de duas torres residenciais coladas no parque interferiria no fluxo de luz e vento e atrapalharia a experiência dos visitantes, que costumam buscar a Unidade de Conservação como um refúgio dos barulhos da vida urbana e uma forma de conexão consigo mesmos.
A conservação das espécies, e do maior número possível delas, é fundamental para a continuidade das interações necessárias à vida na Terra, que depende da existência de múltiplos organismos e seus serviços ecossistêmicos. Segundo Mathias Pires, professor do Instituto de Biologia da Unicamp, "a perda de espécies leva à perda de complexidade dos sistemas ecológicos, que é o que mantém esses sistemas funcionando”, explica.
Da perspectiva humana, o que a humanidade perde com a falta de biodiversidade são os serviços ecossistêmicos realizados pelos mais diversos organismos, como polinização, decomposição, dispersão de sementes e redistribuição da água no planeta, como o fazem as árvores. Sem as plantas, por exemplo, o ciclo hídrico desacelera, o que significa menos acesso à água.
“A perda dos serviços ecossistêmicos impacta diretamente nossa saúde, nossa economia, nosso bem-estar, nosso psicológico. Ela implica perda de produtividade de vários produtos do qual nossa economia depende, implica aumento de preço, o que por sua vez causa problemas sociais e de distribuição de alimento, entre outros. Perder biodiversidade é um péssimo negócio. Não só para a biodiversidade, mas para a humanidade”, sentencia Pires.
Os pilares da solução passam por uma mudança essencial de paradigma. “Se existe uma crise da biodiversidade, a gente está no meio dela. A visão de que os organismos e os seres humanos são entidades separadas é parte do problema. Precisamos de uma mudança mais profunda na sociedade na forma como encaramos o consumo e o uso de recursos naturais. A economia é planejada com base em uma premissa de crescimento infinito, mas a Terra tem uma área limitada e recursos limitados”, avalia. "Para uma sustentabilidade a longo prazo, de milhares de anos, a gente precisa de uma mudança radical no modelo socioeconômico. Não dá para se basear na ideia de que a gente vai continuar produzindo cada vez mais e a Terra vai aguentar.”
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